quarta-feira, 8 de julho de 2015

Crítica Literária: O Ser-se - Júnia Azevedo


O Ser-se 
Júnia Azevedo
Páginas: 200
Editora: Circuito

Nesta instigante poética sobre o ser se encena a densidade abissal da experiência, assim como as matizações intensivas do corpo, de forma que personagem se pluraliza e se desdobra ao infinito, pois o ser se declina na reflexividade e se conjuga como processo. Dai o antinaturalismo radical que perpassa esta narrativa apaixonante, pela qual o sujeito se enuncia na multiplicidade do devir, modulando que é pelos acordes sublimes de Fernando Pessoa. - Joel Birman
Ancorado num Rio de Janeiro de tragédias pessoais(hospital, doença, dores, abandono…), a personagem viaja para Lisboa, cidade que, de certa forma, metaforiza suas transformações internas: das ruínas do terremoto dos setecentos à corajosa e perseverante reconstrução de si.
Eu não quis escrever um livro só quis salvar-me. E, ao salvar-me, escrevi um livro.
É assim que somos iniciados na história desse livro. Um pequeno desabafo, que ao longo da trama iremos descobrir o motivo. Tudo começou num dia qualquer, como sempre começam em livros clichês, mas este não é um livro clichê, esse livro tem história, ao não ter história. Deixe-me explicar. 

A personagem começa narrar o início de seu dia, que será o início de uma história. História essa que não se atém aos fatos, e sim aos sentimentos. Não há uma narrativa com começo, meio e fim, não há um objetivo a se cumprir. Não há herói que se possa salvar algo, não há mocinha que luta para ficar com o mocinho, não há guerra a ser ganha, a não ser a guerra contra si mesmo. 

Somos introduzidos a um universo de pensamentos, um turbilhão de emoções. O leitor experiente adéqua os olhos a tamanha luz, buscando cada vez mais conhecimento, enquanto o leitor ingenuo cerra as pálpebras devido a tamanha claridade. 
Neste momento da minha vida, não quero espaços delimitados. Quero existir-me e perder-me no vazio de uma folha em branco, sem margens, sem pautas, sem linhas divisórias
Mergulhamos em mares tão profundos, e o que respiramos são as palavras envoltas em compassiva paixão. Uma paixão pela vida, uma paixão por si, uma paixão por um homem desconhecido. Diante de tantos devaneios, perdemos o foco e soltamos a imaginação. 

É narrado em primeira pessoa e é introspectivo. A narradora se identifica como X, para deixar o leitor curioso acerca do que poderá acontecer. Ela não nos dá muitos detalhes dos ocorridos, para não poder se expor demais. Porém, fica íntimo do leitor ao contar os pormenores de suas emoções.
A verdade é que o que eu quero eu não acredito que me seja permitido. Por isso, não assumo o que quero: amar e ser amada incondicionalmente! Quero tanto, quero tanto, que tenho medo de tanto querer.

Ela escreve com a alma, com o coração aberto em fragalhos. Com uma ligação de pesar daquilo que ela é. Ela busca encontrar-se, busca ser-se, mas ser o que? Encontrar quem? O eu antigo, o eu do passado? O eu que ela deveria ser e não é? Através deste texto teremos tantas perguntas quanto respostas.

"Nós dois estamos encalacrados nessa história. Eu e você, esperando uma trama, um enredo, algo que faça sentido. Mas o problema é que a vida não faz sentido. Ela é apenas uma sucessão de acontecimentos sem nenhuma lógica entre si. Passamos a vida buscando sentido para a nossa existência. Não há explicação. Admitir que a vida não tem sentido é duro. E por ser tão difícil já deveria ser suficiente para transformar toda a nossa forma de vivê-la. Mas acontece que a coisa não funciona assim. Estamos condenados a repetir a vida toda o mesmo jeito de pensar e, por isso, de viver."


Ela fala com o leitor, e em alguns momentos tenta escrever para nós, para que o leitor permaneça com ela. Ela tenta dar um rumo a essa história, ela tenta dar um enredo que o leitor possa se interessar. As vezes, implora para o leitor ficar, como se o livro só pudesse existir na presença dele. E é o que acontece. Na mair parte do tempo X. escreve para si mesma, para suprir a necessidade, é quase como fisiológico.
Mas eu não escrevo para agradar. Escrevo para me salvar. Isso não é literatura. Tudo o que escrevo é sobre a dor e o ato de escrever minha dor.
Ela não sabe escrever a alegria, pode-se dizer que esse livro tem uma história que poderia ser desgostosa. Mas é a história mais saborosa que eu poderia ter lido. O livro não torna-se melancólico quando X. conta sua pesar para mim, ele torna-se real, existente, genuíno. A cada frase eu pude sentir sua angústia, sua indecisão, sua fraqueza. Mas pude sentir também sua garra, seu vigor, sua energia.
Um furacão ventou dentro de mim e ainda não tenho força para me levantar depois da violenta tempestade.
Júnia Azevedo não deu apenas uma parte de sua vida para esse texto. Ela deu convicção, ânimo e paixão. Ela masturbou-se com as palavras. Ela deu o seu gozo, e eu me deleitei com essa leitura. Tive orgasmos ao ler frases tão esplendidas. Eu fui ao céu e voltei, cada espasmo de prazer que eu poderia ter com esse livro, eu tive. 

X. não tem pudor diante do leitor, ela não se acanha diante das mesuras da vida. Não há compostura quando se fala sobre o amadurecimento de uma alma e o apodrecimento de um corpo. A vida é isso, não há espaços para decoro. Ela despe-se de tal maneira que é impossível não olhar e querer mais. Vamos conhecendo essa mulher no seu âmago, enquanto ela pouco demonstra para aqueles que estão fora daquela caderneta em que ela escreve durante os almoços.
No meu quarto de fundos, com as cortinas e janelas fechadas, eu assisti à carnificina. Homens e mulheres sem braço, sem pernas, com os crânios expostos, com os olhos perfurados, com os rostos desfigurados e as carnes abertas. 
X. critica deus, el certo momento ele a abandonou. Ele estava ocupado demais ignorando ela, ignorando o seu pedido. Mas ela não pedia algo qualquer, por mais que soubesse que ele estava ocupado cuidando do resto do mundo. Ela pediu para que ele a fizesse voltar a acreditar nele. 

Há um homem, há sim, e ela o deseja ardentemente, é um amor tão visceral que chega a doer. Há uma trama de mistérios, tão incógnito que ela passa a chamar o homem desconhecido de Y., e mais tarde ele adquire um nome. O relacionamento deles por uma inquietação, e através dele ela se descobre.

O relacionamento com Y pode-se dizer que seja sério. Depois de vários erros, ela insiste em perdoá-la, afinal, ela o ama. Aqui não entra em questão o relacionamento abusivo que estamos acostumados a ver. É um relacionamento que só eles entendem, ou melhor, desentendem. Somente quem leu o livro saberá. É um compilado de afeição e lascívia. É um erotismo pungente.

O Ser-se é um romance épico sobre o amor a si mesmo. Inspirado em Clarice Lispector, percorre com maestria de uma grande escritora. Numa avalanche filosófica escatológica sobre a vertigem da existência, este texto escrito a hálito e intimidade se faz uma obra para além da literatura. Você será arrastado às trevas, numa profundeza por poucos autores e pensadores ousada, para ser alçado num retorno frenético desde o nada até o ser que nunca nos desabita. (Nilton Bonder)

Assim como em O Tom Ausente de Azul, a escritora conseguiu escrever sobre o nada. Sobre a ausência. Ela deu a luz a si, repleta de cintilância, ela fez da sua concepção o nascimento do seu fulgor e júbilo. 
Eu vi o pior. E é o pior que preciso escrever. O que não se escreve, o que se esconde, a aflição máxima, o horror que guardamos no fundo do nosso mais secreto esconderijo.
O Ser-se de Júnia Azevedo é um livro repleto de devaneios femininos a lá Clarice Lispector. Embebida em sentimentos, a narradora ejacula verdades nuas em nossa face. Intrigante e misterioso, é um livro para quem gosta de filosofar, de quem gosta de pensar, e sobretudo, amar.

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